Uma empresa americana prepara o lançamento do primeiro peito de frango sintético. A “carne celular” pode revolucionar a produção de alimentos e evitar o sofrimento de milhões de animais. Mas que gosto ela tem?
Antes de ler o formulário, eu não estava preocupada com o fato de que aquele pedaço de peito de frango grelhado, que eu estava prestes a comer, tinha levado menos de três semanas para se transformar de um punhado de células, dentro de um tanque de laboratório, em um grosso pedaço de carne. Eu aceito assumir total responsabilidade, pergunta o documento, por quaisquer danos à saúde, perdas materiais ou morte, que possam decorrer da ingestão de uma carne “cujas propriedades não são totalmente conhecidas”?
Estou na cozinha/centro de produção que a empresa americana Upside Foods inaugurou na região de São Francisco, na Califórnia, como parte de seus esforços para fabricar e vender carne de frango feita de células-tronco, primeiro nos EUA e depois no resto do mundo. Ela acredita que outros alimentos, incluindo carne bovina, pato e lagosta de células-tronco, virão logo depois.
“Nós não podemos assumir que o que comemos hoje é o melhor possível”, diz o cardiologista Uma Valeti. Ele fundou a empresa em 2015, quando se convenceu de que a mesma tecnologia usada para cultivar células-tronco com fins médicos, e reparar danos no coração, também poderia servir para produzir comida. “Nós estamos mudando o paradigma”, diz. “Estamos separando a carne do animal.”
Engenheiros e cientistas de vários países tentam encontrar um jeito comercialmente viável de transformar células-tronco de animais em um suculento bife Wagyu, ostras com gosto de mar ou salmão de alta qualidade, para sushi. Esses projetos são financiados por quase US$ 3 bilhões em investimentos de empresas como a Archer-Daniels-Midland e a gigante brasileira JBS; bilionários como Bill Gates; celebridades com preocupações ambientais, como Leonardo DiCaprio; e agências governamentais, incluindo o US Department of Agriculture e a Qatar Investment Authority.
O mercado global para a carne cultivada, ou baseada em células, pode alcançar US$ 25 bilhões anuais em 2030, segundo estimativa da consultoria McKinsey. É um pedacinho minúsculo do setor de carne como um todo, que movimenta US$ 1,4 trilhão. Mas as empresas de alimentos consideram essa tecnologia crucial na disputa por um mercado que está crescendo rápido, o da chamada “carne alternativa”.
Já faz quase dez anos que o primeiro hambúrguer feito de células foi apresentado ao mundo (ele foi produzido pela Universidade de Maastricht, na Holanda, e custou US$ 345 mil). Mas a corrida para transformar células em carne ainda é uma espécie de “Velho Oeste” da indústria alimentícia. Embora as empresas tenham registrado cada vez mais patentes e feito avanços revolucionários (que elas protegem como se fossem ouro), ir ao supermercado da esquina e comprar um “bife de células” continua sendo só uma possibilidade teórica – e cara.
Apenas 700 pessoas no mundo, mais ou menos, já pagaram para comer carne de células – e todas elas moravam em Cingapura, que se tornou o primeiro país a autorizar a comercialização desse tipo de produto, em 2020 (naquele ano, um restaurante local serviu nuggets de frango celular, que também estiveram disponíveis para delivery por tempo limitado). Os Estados Unidos não estão muito atrás: o ministério da Agricultura do país e a FDA podem definir as regras para produção e venda de carne celular até o fim deste ano. Mas tudo isso ainda está bem longe das prateleiras dos supermercados.
Há dúvidas quanto à capacidade das empresas de dominar a tecnologia, e construir fábricas grandes o bastante, para produzir a carne em quantidades comercialmente viáveis, por um preço que as pessoas estejam dispostas a pagar. Mas, conforme isso vai se aproximando da realidade (no fim do ano passado, a empresa americana Future Meat disse que conseguiu reduzir para US$ 1,70 o custo de produção do seu peito de frango celular), cozinheiros e consumidores começam a olhar com mais atenção para esse tipo de alimento – e se ele merece ser aceito pelo mercado, como aconteceu com a “carne” feita de plantas.
“Eu não estou animado, mas também não apostaria contra”, diz o empresário Danny Meyer, dono de alguns dos principais restaurantes de Nova York. Ele diz que ainda não viu provas de que a carne celular é mais saudável ou melhor para o planeta, ou que ela não é apenas uma curiosidade para uma elite de consumidores. “Eu quero comprar comida para fazer jantar, não uma experiência científica.”
Para os defensores da ideia, cultivar a carne celular em tanques (veja infográfico acima) é uma solução para reduzir o impacto ambiental da produção de alimentos, e diminuir o sofrimento animal. Além disso, poderia reduzir a propagação de doenças transmitidas pela comida, e criar uma fonte abundante de carne para alimentar o mundo.